Ponto de partida: «“Nós todos os dias lidamos com processos que facilmente atingem milhares de euros, centenas de milhares de euros, ou milhões de euros, em toda a Europa um dos muitos mecanismos anticorrupção que existe é, quem lida com este tipo de situações tem de ser muito bem remunerado e essa é uma situação que tem de ser bem escalpelizada no nosso país. Porque a tentação é sempre muito grande”». A afirmação é de Paulo Ralha, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos.
A afirmação deriva da operação da Judiciária, Tax Free. O conteúdo desta operação foi-nos dado a conhecer em Abril de 2016. Na altura, fruto da investigação, a Judiciária estaria convencida de que estavam na presença de funcionários do fisco suspeitos de «corrupção, recebimento indevido e falsidade informática ofereceriam uma panóplia de serviços aos empresários e outros contribuintes que lhes pagassem avultadas quantias em dinheiro» .
Os detidos foram agora, ontem, acusados pelo MP de «que, entre o segundo semestre de 2011 e 17 abril de 2016, os arguidos funcionários da AT, a troco de dinheiro e de bens patrimoniais e não patrimoniais, praticarem atos que beneficiaram particulares junto da administração fiscal.»
No dia em que a operação saiu à rua, em 2016, e culminou na detenção dos suspeitos, funcionários da AT, o sr. Paulo Ralha – eventualmente procurando sacudir a água do capote – afirmara: «“não está em causa a idoneidade da maioria dos trabalhadores” da máquina fiscal. “Perante os dados conhecidos, estamos a falar de pessoas com cargos dirigentes, em lugares de chefia ou direcção, que poderão ter estabelecido relações com membros da sociedade civil – fiscalistas, advogados, técnicos oficiais de contas”».
No dia em que a acusação foi conhecida, em Abril de 2017, o sr. Paulo Ralha, não se lembrando do que afirmara em 2016(?), atirou com a bojarda: «todos os dias lidamos com processos que facilmente atingem milhares de euros, centenas de milhares de euros, ou milhões de euros, em toda a Europa um dos muitos mecanismos anticorrupção que existe é, quem lida com este tipo de situações tem de ser muito bem remunerado(…).Porque a tentação é sempre muito grande.»
(Vou tentar respirar um pouco antes de criticar tal…soberba.)
Ora bem, estamos a falar de funcionários públicos. Cuja liberdade de escolha profissional, constitucionalmente consagrada, estaria pressuposta quando se decidiram ao exercício de uma profissão de serviço público, em função do cidadão.
Bem sei que os tempos para o funcionalismo público já conheceram melhores dias, melhores contrapartidas. É inegável, sendo transversal – por todo o sector público – as críticas ao(s) sucessivo(s) Governo(s) da República. É constante, em nome do sacrossanto paradigma de verbas contingentes em períodos de aperto orçamental (e já assim vivemos, pelos menos de tanga, desde que aderimos à moeda euro!), a forma do(s) Governo(s) de ataque ao controlo da despesa pública: cortes salariais sobre o funcionalismo público, activo e reformado; congelamento de carreiras; trabalhadores décadas a fio a recibo-verde….um cardápio/expediente já por demais conhecido de todos os portugueses.
Não obstante, focando-me, exclusivamente nos funcionários públicos dos impostos – aqueles que, em abono da verdade, garantem receita fiscal ao Estado(como se o estado só existisse para arrecadar receita!) – seria interessante recordar dois aspectos curiosos, cujo conteúdo, possivelmente, será de (des)conhecimento geral:
1) o Fundo de Estabilização Tributário (FET), criado em 1997 pelo, então, Min-Fin Sousa Franco, tem permitido que, ao longo dos últimos 20 anos e sempre que a cobrança coerciva de dívidas fiscais supera a meta definida pela administração tributária, uma fatia de 5% desse montante total seja transferido para o dito cujo. Os montantes totais transferidos anualmente para o pecúlio pessoal do funcionário tributário, variam, mas, grosso modo, com particular enfoque depois da portaria da anterior Min-Fin, Maria Luís Albuquerque, andam na casa dos 250 euros/mês a mais por ano. Neste conspecto, o sr. Paulo Ralha (quem mais!) teve o desplante de afirmar: «“foi uma forma, que se mostrou eficaz, de motivar os trabalhadores e de a DGCI atingir outros níveis de performance que não tinha atingido até então”».
Como??
É assim mesmo. Funcionários públicos, por comparação com quase todos os outros, de 1.ª Categoria, pois que garantem receita ao Estado. Lindo!!!
Admito que, alguns leitores, conhecedores de facto da situação, poderão estar tentados a contrapor: «Ah, mas o FET só abrange cerca de 82% dos funcionários da AT». «Há uns 18% que ficam de fora de tão apetitoso “suplemento” salarial.»
Ok. Concedo.
De facto o FET só abrange 9000 dos 11 mil funcionários da AT. Mas isto só porque os restantes 2mil funcionários, aqueles que pertencem à área aduaneira, dispõem de um fundo – exactamente igual ao FET – próprio. (não se riam, por favor!!! A discriminação é séria!).
Isto é Portugal. Pensem nisto.
2) A progressão nas carreiras, em funcionalismo público, está congelada. Pelo menos desde 2010.
Certo?
Não.
Também aqui há “novidades”. A anterior Min-Fin, Maria Luís Albuquerque, por portaria, decidiu alavancar carreiras especiais e conceder aumentos salariais.
É certo que, pelo menos desta vez, não abrange a totalidade dos mais de 11 mil funcionários da AT.
Mas, caramba, só os funcionários públicos que trabalham na arrecadação de impostos é que são, na verdadeira acepção do termo, «funcionários públicos» para o(s) Governo(s)?
Funcionários públicos, por comparação com quase todos os outros, de 1.ª Categoria, pois que garantem receita ao Estado??? Porra…haja decoro!
Faz algum sentido o «desabafo» mais recente do sr. Paulo Ralha, em que «”(…)todos os dias lidamos com processos que facilmente atingem milhares de euros, centenas de milhares de euros, ou milhões de euros(…)a tentação é grande(!)”»?
Quando a tentação é grande, e, se a “tentação” é grande, então, que poderão dizer os restantes milhares de funcionários públicos, afastados da categoria de primodivisionários, quando comparados com os primogénitos funcionários dos impostos?
Isto é Portugal. Pensem nisto.
Não, não é a tentação que é grande. E, reclamar de barriga cheia é sintomático de algo bem pior…