Na segunda metade do século XIX Eça de Queirós já escrevia nos Maias que “Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!”. A Arcada a que se referia Eça era obviamente o Terreiro do Paço.
Hoje, passados 150 anos, é sói dizer-se, muito provavelmente inspirado em Eça, que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.
Uma expressão que vai de encontro a um estado centralista contaminado por uma cultura política herdada de um passado imperial combinado com um provincianismo neocolonial.
Hoje Lisboa que insiste e persiste em ser a capital de um império que já não existe tornou- se numa Cidade-Estado que concentra todos os poderes e todos os recursos.
O termo Cidade-Estado, ao contrário do que nos que é habitualmente transmitido, tem origem no século XIX, em Inglaterra, sendo usado em referência às cidades da antiguidade, nomeadamente da Grécia Antiga e da Península Itálica.
Estas eram cidades independentes que exerciam a sua soberania sobre o território adjacente sendo o centro político, social, cultural e económico.
Hoje, passados muitos séculos, com toda evolução tecnológica, a configuração social, política e económica do País é em tudo idêntica à da antiguidade clássica.
O Movimento Pelo Interior que integra entre outras personalidades, António Fontaínhas Fernandes, Miguel Cadilhe, Rui Santos e Silva Peneda, realçava, em 2018, num documento entregue ao Presidente da República que na área metropolitana de Lisboa viviam 2,8 milhões de pessoas e na do Porto mais 1,8 milhões, concentrando-se apenas nestas cerca de 45% do total da população residente no continente. Se a estes números, desde logo assustadores, juntarmos a população residente no litoral do país passamos a falar em cerca de 60% da população que reside na AML, AMP e na faixa costeira do país. Entre 1960 e 2016, a população residente no litoral aumentou 52,1%, enquanto no interior diminuiu 37,5%. Em 1960, no interior residiam mais de 3 milhões de pessoas, enquanto agora são menos de 2 milhões. No litoral, no mesmo período, o aumento de pessoas residentes foi de cerca de 3 milhões. Outro dado muito preocupante passa pelo facto de 82,4% da população com menos de 25 anos residir no litoral que contrasta com os 17,6% que vivem no interior do país.
Desde então até hoje muito pouco foi feito. O Estado central continua a ignorar o interior do País.
Onde não existem pessoas não há votos, onde não existem votos não existe investimento, onde não existe investimento não há pessoas. É uma pescadinha de rabo na boca. Há mais de 40 anos que é assim, independentemente dos partidos políticos que têm governado o país.
Ainda esta semana numa entrevista ao Porto Canal o presidente da Câmara de Vila Real, Rui Santos, uma das vozes mais activas na defesa do interior do país, dizia que 51% dos estudantes universitários frequentavam universidades instaladas em Lisboa e no Porto, 30 % estudavam em estabelecimentos do ensino superior no litoral, sobrando apenas 19% de jovens que estudam em universidades ou institutos politécnicos sediados no interior do País.
Na mesma entrevista o autarca de Vila Real, Rui Santos, dizia-nos que a realidade do interior não mudará enquanto não existir um pacto de regime, entre todos os partidos políticos, para as próximas três ou quatro legislaturas.
Não podia estar mais de acordo.
Não existem leis, decretos, ministérios da coesão territorial, livros brancos ou azuis, políticas de valorização do interior ou promessas de descentralização de todos os partidos políticos em tempos de campanha eleitoral que resolvam os problemas do interior do país.
As desigualdades entre o litoral e o interior são chocantes nomeadamente no acesso à educação, à saúde e ao emprego. Estas diferenças passam a ser um obstáculo quase inultrapassável no que diz respeito à igualdade de oportunidades e ao desenvolvimento.
Estamos muito longe de cumprir o desígnio de uma justiça social.
Uma reportagem do Porto Canal mostra-nos que, caso não mudem rapidamente as prioridades do Estado central, os próximos anos não auguram um grande futuro para o interior do país.
Apenas, no que diz respeito ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o regime excepcional de contratação pública continuará a acentuar as enormes desigualdades entre Lisboa e o resto do País. O governo vai reforçar dezenas de serviços e instituições do Estado. No total serão contratados 1295 funcionários sendo que apenas 18%, ou seja, 233 ficarão sediados em organismos fora de Lisboa.
Dos 698 organismos da administração central do Estado 650 estão sediados em Lisboa. Os restantes 48 estão espalhados ao longo do país. Isto significa que mais de 93% da máquina do estado está concentrada em 3% do território nacional.
Não existe paralelo com outro país do mundo ocidental.
Mas não ficamos por aqui.
Existem organismos do Estado que apenas são uma realidade no papel, não têm sede, nem funcionários.
Um dos exemplos é a Inteli, Inteligência em Inovação – Centro de Inovação, que foi constituída a 12 de Novembro de 1999 com o objectivo de promover a inteligência em inovação. Do ponto de vista jurídico trata-se de uma associação com a participação do Estado. Em 2006 estava registada sob a tutela do Ministério da Economia mas em 2019 com a nova orgânica do governo passou a estar na dependência do Ministério da Economia e da Transição Digital, porém, segundo este ministério a Inteli foi desactivada em 2014 mas nada mais se sabe. Existe do ponto de vista formal mas não tem instalações, nem funcionários, nem dirigentes.
A concentração dos grandes centros de decisão do Estado em Lisboa atrai o sistema financeiro e as sedes das grandes empresas privadas que, por sua vez, chamam fornecedores e prestadores de serviços que, por sua vez, aliciam as pessoas na procura de uma vida melhor, de mais e melhores oportunidades de trabalho, de melhores salários.
O interior do país passa a ser uma prioridade efectiva para o regime, passando das palavras bonitas aos actos, ou nas próximas duas décadas passará a ser um deserto com este processo acelerado de litoralização do país.
A decisão da descentralização como factor decisivo para a coesão territorial não está apenas nas mãos do governo mas de todos os partidos políticos com representação parlamentar. Não há tempo para perder porque o abandono a que está votado o interior do país há décadas não permitirá correr mais atrás do prejuízo.
É caso mesmo para dizer, é agora ou nunca!
Paulo Vieira da Silva
Gestor de Empresas / Licenciado em Ciências Sociais – área de Sociologia
(Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico)