Talvez eu tenha me derretido na areia do tempo de sua ampulheta. Sua queixa: gastrite nervosa, e o médico a encaminha para o atendimento psicológico, já que remédios não dão mais jeito. Ansiosa, expressa-se por balbucios entre risos e choro, trêmula, inquieta, levanta-se pelo menos oito vezes em menos de meia hora. Respiração ofegante, mudava de assuntos desconexos e circulares, indo e vindo para lugar algum. Olhar petrificado e inconstante. O que mesmo queria dizer? Quem é ela? Irritada, desajustada de si mesma, sem lugar, sem tempo, apenas ansiedade. Mistura de calma e fera. Ideias aceleradas, pensava ter dito coisas que jamais pronunciou. Confusão em novelo. Mas qual o segredo do desespero, do não se caber em nada, no próprio destino? Solta a correr sem rumo, eira ou beira, trotando desgovernada para o vazio. Qual direção? Apenas correr da insatisfação com um porvir que jamais chega, para substituir a pasmaceira de ontem por outra incerta de amanhã. Qual seu sossego?
Este é o drama pós-moderno de a ansiedade querer encaixar o tempo mítico circular no tempo linear, um drama geométrico existencial. Ela já não mais sabia se ria, chorava, qual carreira seguir, a qual amor se dedicar, se engordava ou se fazia regime, se mudava de casa, cor de cabelo ou de vida. Era a personificação do desajuste da falta de percepção de si mesma, uma jovem mulher perdida entre tantos achos e eus, em suas fantasias que roubaram seu sono, sonhos, respiração, tranquilidade, deixando nela inquietude, medo, obsessão, paranoia na qual tudo era para ontem. A paciência assassinada não dava tempo para nada, nem para sua alma repousar. Perdeu cabelo, ganhou gastrite, foi-se sua respiração em uma tosse alérgica frequente. Sua vida afetiva era um fiasco: ninguém lhe servia e não existiam gênios que, com uma esfregada na lâmpada, realizassem instantaneamente os desejos. Mas por que tantos o procuram?
Hoje, o maior mal da humanidade está nos transtornos de ansiedade. Em minhas pesquisas e estudos já descrevi isso há mais de 20 anos em artigos. Fomentando as crises existenciais, problemas de personalidade de saúde: cardiocirculatórios, psiquiátricos, alérgicos, gástricos, de impotência sexual, de sono, respiratórios. Há uma estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que cerca de dois bilhões de pessoas no mundo sofrem de transtorno de ansiedade. Você é mais uma delas? Tem tranquilidade?
Tenho dedicado boa parte de minha vida na compreensão deste fenômeno para tratar tais eventos rotineiros em consultório. Vivemos no tempo da pressa, do virtual, da magia omnipresente e omnisciente, tempo desdobrado de muitos, tempo da impotência de querer entender e captar as coisas e não conseguir. Tempo do virtual que tudo pode e pouco oferece. Ansiedade e o tempo da frustração de não mais se perceber no tempo da natureza. Desajuste do tempo pessoal. Mas não somos máquinas?
O que é esse tempo? Tempo da filosofia, da religião, do ser humano? Qual é o seu tempo? O tempo do originário de Aristóteles? Tempo do café e biscoitos? O tempo que decorre e de confissão de Santo Agostinho? O tempo transcendental de Kant? O tempo organizado de Jean-Paul Sartre? Ou a temporalidade em Bergson e Merleau-Ponty? Qual é o seu tempo? O time de Marie-Louise Von Franz e o tempo da subjetividade e do inconsciente? E o desdobramento do tempo de Jean Pierre Garnier? Será que no fundo tudo isso não seria apenas uma centelha do tempo mítico de Mircea Elíade? Tantas teorias e pontos de vista nos circulam, mas volto- me à narrativa poética do tempo do relógio de Mário Quintana e me lembro do tempo do beijo, do tempo da espera, da volta, o tempo do sossego e de um lugar que não existe; no tempo de estar a fitar o nada, de contemplar os instantes que ecoam em horas fundindo e rindo da nossa existência. Quantos minutos me restam?
A pressa e instantaneidade, os milionésimos de segundos de um microprocessador que mudaram nossos hábitos e costumes, o ser humano máquina desajustado de si mesmo, da sua percepção corporal, hoje chora querendo a volta ao tempo do mítico, do tempo primitivo, do tempo da aldeia e do vento. Seu relógio biológico está fora da hora porque já não mais se percebe: anda a solta badalando entre segundos, fora de si, sem orientação ou precisão.
A moça citada no início deste artigo não é uma pessoa, é parte do drama de todos nós, dos milhares de pacientes que atendo todos os anos e que se perderam em seu próprio tempo, em sua história e que agora tem de adoecer para reencontrar o sentido e o rumo de sua própria vida. Existe tempo para você, para o autocuidado, para se lembrar de quem um dia sonhou em ser? Qual é seu tempo?