A propósito de um artigo do Manuel Carvalho, ontem, no Público, resolvi deixar correr a pena … e a memória.
Houve tempos (mais de 25 anos, quando deixei de ser funcionário público e me passei para o setor privado) em que deixar o vínculo ao estado e aceitar assinar um contrato de 40 horas significava ganhar mais do dobro de um funcionário público. Significava aumentar um dígito ao valor do salário. No meu caso, era dar o salto para lá da mítica barreira dos “cem contos de reis”!…
Os funcionários públicos trabalhavam menos, tinham emprego prá vida, tinham benesses é certo, mas ganhavam muito menos do que quem desempenhava funções similares em companhias privadas. Ninguém se queixava muito – os sindicatos queixavam-se sempre mas isso é uma inevitabilidade, como a morte e os impostos – mas cada um ia vogando entre a “segurança” do público com salário mais baixo e o “fausto” do privado que, mau grado a relativa precariedade, nos “afinfava” com uns cobres substancialmente mais gordos, na folha de féria. E então, se se quisesse fazer umas horitas extra, aí havia gente que trazia uns “ordenadozitos” valentes, para casa.
Assim se fazia o equilíbrio de um mercado florescente e em expansão, nos tempos em que a dívida era mais do que sustentável e vivíamos o dealbar da nossa integração europeia, com os dinheiritos da “Cêéé” a entrar a rodos para granjear a economia!…
O que mudou então? Como é que os funcionários públicos, velhos “parentes pobres” da sociedade laboral, amanuenses e “mangas de alpaca” cinzentos, se transformaram, com o passar do tempo, em “novos ricos burgueses” e inomináveis detentores de despudoradas regalias, ostentando luxos verdadeiramente “versalhianos”, como o de ter um contrato de trabalho estável?…
O que mudou, então?…
Claramente foi o emprego privado que se degradou. Uma classe média que vivia de bons salários e com uma estabilidade assinalável viu, de um momento para o outro, ruir os seus sonhos e instalar-se o pior dos pesadelos. Falências e despedimentos em massa, empresas outrora florescentes e seguras deixam de garantir o que quer que seja. Quadros com 20 e 30 anos de casa, com idades já para lá dos 50, são confrontados com dispensas mais ou menos compulsivas ou, não poucas vezes, com a necessidade de regredir no seu salário sob pena de não conseguirem sequer continuar a garantir a subsistência da família. A emigração, apadrinhada ao mais alto nível, tornou-se uma realidade revisitada ao fim de 40 anos. Muitas vezes, ambos os cônjuges perdem os empregos simultaneamente. Outras, um deles, funcionário do estado, torna-se o esteio da família, sustentando com o seu “faustoso” ordenado o que dela vai restando.
Certo é que os funcionários públicos não são “virginais meninos de coro”, mas muito menos são os “mamões parasitas” que a ala neo-liberal nos quis vender nos últimos anos.
Por isso, a discussão das horas contratuais de trabalho acordadas no passado, à luz do presente, não faz qualquer sentido. Pura e simplesmente o que se tenta é demagogicamente tentar equilibrar o que não é, nem nunca foi, equilibrável. Que não é igual em nenhuma parte do mundo. O emprego público e privado. E, como não faz qualquer sentido alterar unilateralmente contratos assinados de boa fé, o estado e a economia em geral deveriam sim preocupar-se em valorizar o trabalho privado através do investimento, fazendo-o regressar a níveis decentes que garantam, através de uma contratação digna, a justa remuneração do labor prestado.
O valor do trabalho é um dos pilares mais importantes do estado social, tão caro às social-democracias evoluídas. Destruí-lo ou desvalorizá-lo nunca será uma opção credível …
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/um-horario-para-a-irresponsabilidade-1734092?frm=opi