Assistimos, por estes dias, a notícias em catadupa sobre investigações criminais, que no seu decurso regular, vão-se concretizando e envolvem servidores públicos, grupo profissional no qual – sinalizo já o “disclaimer”- me incluo.
Em menos de duas semanas, vimos desfilar pelos ecrãs, detidos, um magistrado do Ministério Público, Autoridades de polícia criminal, dirigentes e funcionários da Administração Pública, os quais, presumivelmente cometeram atos ilícitos tipificados como crime de corrupção e outras infrações conexas.
Especialistas, mais ou menos reconhecidos para o efeito, desataram a bramir que os cortes salariais dos últimos anos, a perda de prerrogativas próprias dos agentes públicos e a consequente desmotivação generalizada daqueles, eram a causa e o efeito deste surto criminal.
A verdade é que, a crueldade com que se abandonaram, à beira da indigência, os funcionários públicos e o amesquinhamento pueril com que se retiraram aos mesmos, prerrogativas constituídas com esforço ao longo do tempo, condizentes com a relevância e a delicadeza das matérias funcionais, incendiaram o Nobre Povo. Com efeito, ao rejúbilo dos opressores, correspondeu, em exata medida, o desespero dos oprimidos.
Sem prejuízo, pode e deve – nem que seja na perspetiva da resistência última – o oprimido ser digno. Quem comete atos de corrupção não se sente oprimido. Para além de dispor de um sistema desorganizado, descontrolado, indolente e desnorteado, para atingir com eficácia os seus objetivos, é confiante, ambicioso, está enovelado no poder que eventualmente detém, e acima de tudo, só pode desprezar profundamente aquela casta inferior – os oprimidos.
E assim é, porque o desrespeito manifestado por todos os servidores públicos, pelas organizações que era suposto servirem e bem, e a vexação, em “ultima ratio”, a que sujeitaram a Democracia, puseram em causa a honra de toda uma classe que, não obstante ser oprimida, o é condignamente e luta a diário, por manter viva a chama, desse fim único e possível da atividade administrativa, que se votou deliberadamente ao esquecimento, o “interesse público”.
Não nos faz grande falta incremento do acervo legislativo. Dispomos das previsões constitucionais dos artigos 266º a 272º, da Carta Ética da Administração Pública, do Código de Boa Conduta Administrativa do Provedor de Justiça, de um punhado de diplomas que pretendem prevenir, detetar e punir atos desta índole abjeta, e ainda de Planos de Prevenção de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas (que todas as entidades públicas devem dispor e monitorizar), de Convenções Internacionais, de organizações governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais, dedicadas ao assunto, e até de comissões eventuais como a que a Assembleia da República aprovou no dia 8 de abril (Resolução da Assembleia da República nº 62/2016, hoje publicada), para o reforço da transparência no exercício de funções públicas, pelo que conclui-se que os instrumentos, esses, já existem.
O que porventura fará falta será compreender eficazmente, como dirimir a dimensão organizacional desta problemática, i.e., de que modo poderão aqueles instrumentos incidir diretamente na eliminação das oportunidades, para a prática dos atos de natureza fraudulenta, pois a “hexis” humana, identificada por Aristóteles, construída da vontade de cometer o ilícito, conjugados com a pressão de determinado contexto de vida pessoal, não será tão facilmente resolvida.
A “quinta bolgia”, a que Dante Alighieri votava os funcionários venais, ainda me parece pouco.