“Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado.
Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos.
Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos!
De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto.
Quem for voluntário sai e forma.
Quem não quiser sair fica.”
Estas palavras do capitão Salgueiro Maia ecoaram nos ouvidos dos 240 homens, formados, na parada da EPC de Santarém.
Era madrugada.
Madrugada de Abril.
Madrugada de 24 de Abril.
Palavras assombradas pela serenidade, palavras vincadas pela firmeza.
Formaram todos, em frente ao comandante.
A coluna de blindados estava operacional, pronta a marchar para tomar Lisboa e matar a ditadura.
Partiu da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, por onde andei ontem, a pé, em quase câmara mais do que lenta.
Estas, são referências sobejamente conhecidas.
História bela da democracia.
Foi ali que começou a última caminhada do Movimento dos Capitães.
Até hoje, o caminho da democracia, feito de erros históricos e repetitivos, foi trilhado numa direcção que Salgueiro Maia talvez não ousasse entender, fosse vivo, fisicamente.
Voltaria a Lisboa, seguramente, mas muito mais avisado.
Mas, tem sido assim.
Assim chegámos até hoje, até aqui, assim.
Escrevo sobre ontem.
Quem me conhece sabe que gosto de praticar desporto, gosto de treinar Muay Thai, uma arte marcial milenar, chegada da Tailândia, que começou com as migrações das grandes massas.
As massas humanas, que se deslocaram para aquela zona do globo, há milhares de anos, viram-se obrigadas a desenvolver técnicas de defesa, que as protegessem contra os milhares de perigos, os animais e os inimigos, em primeiro lugar.
Assim desenvolveram o Muay Thai, que se mesclou com aspectos culturais, diferentes, assumindo-se como algo mais que uma arte marcial, uma filosofia e cultura de vida.
Também gosto de correr, como gosto da liberdade, porque gosto da liberdade.
Correr não tem, penso, explicação, nem enquadramento, no tempo e no espaço.
Acho que o homem corre, desde que é homem, enquanto tal. Desde o início dos tempos.
Posto isto, há corridas em que faço questão de estar presente.
São poucas, mas sempre simbólicas, como a de ontem, uma estreia, as corridas têm obrigatoriamente que me marcar, deixar algo mais, sempre.
Depois, costumo escrever histórias sobre essas corridas, mas isso fica para outro blog.
Aqui escreverei apenas sobre um pedaço da corrida de ontem, uns duzentos ou trezentos metros em palavras.
Enquanto corro, aprendo a viver, a ser melhor homem, olho as pessoas em redor, as que passam, as do lado, os sorrisos, escuto-lhes as palavras, olho a história, a cada passo, e a cultura. Claro.
Correr em locais onde nunca estivemos é como que fazer um feliz roteiro turístico, a pé.
Feliz porque nos permite inspirar, os cheiros, os odores, permite sentir o alcatrão, o empedrado, a terra, debaixo dos pés, permite ir e voltar, onde e sempre, pouco e muito.
Correr também é revolução.
Isso, o que senti ontem à noite, durante umas centenas de metros.
Tinha-mos passado pelo lado direito da EPC, virado à esquerda, via, mais à frente, minha mulher e uma outra pessoa, a poucos metros.
Por esta hora já Salgueiro Maia estava por ali, com os homens dos chaimites.
Era uma dez da noite. Ali mesmo. Dez da noite só ali mesmo.
Juntei-me às duas, abrandei o passo, fui forçado a abrandar quase todo o passo.
Um travão que não via, um elástico gigante e invisível que me imobilizava lentamente, ali, qualquer coisa que me travou o passo.
Entrámos pelo lado direito, passámos em revista, pela parada, aprumados, estava lá tudo.
Saímos pela porta principal, por um tapete vermelho, que ligava o último metro do quartel ao primeiro metro da rua.
Passadeira vermelha para sair, porque a revolução não pára, a revolução corre!
Foram muito poucos minutos.
A corrida congelou, ali, enquanto a passada se detinha, cada vez mais, deliberadamente, enquanto as imagens passavam em frente dos olhos.
Antes de entrar na EPC pude ver imagens projectadas na parede frontal do quartel.
Lá estava ele, e eles, todos, lá dentro, à espera do momento.
Foi com essas imagens, a preto e branco, que entrei, sem pedir autorização, sem continência.
Olhar em redor, os detalhes, as portas, os brazões, as armas, os claustros, os edifícios, as janelas, as bandeiras que por lá ficaram.
A carga emocional, inqualificável.
Eu, ali, eles, ali, sem que os visse. Apenas senti o clamor, escutei o murmúrio, as botas cardadas, no asfalto. O cheiro a gasolina. O barulho dos chaimites.
Por segundos, eu, ali, formado, a olhar aquele homem, todos eles, naquela noite solene.
Foi ontem à noite, não passou tanta liberdade assim.
Foi isso que guardei mais da Scalabis Nigth Race, esse pedaço de noite solene.
Não apenas porque amo correr, não apenas porque amo a revolução e o seu tempo, não apenas por ter vivido aquele momento comovente, não apenas por isso, sobretudo, porque aquela passagem era solene, em terra solene, solo revolucionário, terra pisada por homens solenes, daqueles que já pouco se fabricam.
Noite solene, a que devo estas e todas as linhas que escrevo, quase o ar que respiro, a cada palavra livre.
Foi, em 46 anos, por causa da minha paixão pela corrida, que senti a pele-galinha, transpirado por todos os poros, naqueles poucos minutos em que a corrida parou, só para mim.
Porque quando corro gosto de viver. Vivo e aprendo.
Tudo ali foi solene, menos os carros de bombeiros, estacionados, onde outrora estavam os blindados, que vi, miúdo, da janela do meu prédio, enquanto passavam na A1, por Vila Franca, e nos acenavam, com sorrisos tensos.
Há quarenta e tal anos de liberdade.
Salgueiro Maia à frente.
A EPC foi desactivada.
Não morreu.
Ontem tive a prova.
Apenas desactivada.
Nós gostamos tanto de desactivar a nossa própria memória, a nossa própria história. Nunca entendi o prazer.
Foi a correr que fiz a minha visita guiada ao palco da noite solene.
Foi a corrida, que tanto gosto, que me guiou pelos caminhos políticos, económicos, financeiros, passionais, ideológicos, dessa revolução, durante poucos minutos.
Consegui ver tudo. Entender melhor ainda.
O suficiente para pensar nos anos que passaram, desde essa noite solene, e ao “estado a que chegámos”, enquanto nação.
Jamais irei esquecer esta corrida, em Santarém, como jamais irei esquecer aquela manhã solene, que nasceu de uma noite assim.
Abril foi uma noite solene e uma manhã de liberdade.