Ainda na canícula da erupção arrisco a escrita, acerca daquele que, com forte probabilidade, poderá vir a ser considerado o maior escândalo relacionado com criminalidade económico-financeira, dos últimos anos.
Alinhados num diapasão e fuso horário que se fez comum, reclamado pelo necessário impacto do caso, os órgãos de comunicação social mundiais, sob a batuta do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) dinamitaram o repouso do escândalo e, em simultâneo, o Mundo ficou a conhecer os principais contornos do acontecimento. Notícias, opiniões, infografias, análises cronológicas e listas de nomes, são expelidos, evidenciando vítimas: o humilde contribuinte, cremado na sua honra e pudor fiscal.
Não tendo ainda atingindo a fase de rescaldo, dificilmente se poderá alcançar que objetivos servirão esta notícia, a sua fidedignidade, dimensão e os efeitos pessoais, políticos, económicos e criminais que consequentemente terá.
No acervo dos apregoados 11,5 milhões de documentos comprometedores para os reais donos-disto-tudo, encontrar-se-ão indícios da utilização de empresas offshore, para facilitação de subornos, negócios ilegais de armas, evasão fiscal, fraude financeira e tráfico de droga.
Já calculávamos, na nossa singela capacidade de entendimento de um mundo apenas virtualmente conhecido, que isto fosse possível de acontecer; não tínhamos ainda era sido atingidos de uma só vez, pelos ciscos de centenas de cleptocratas, vagamente reconhecidos das lógicas de poder, aos quais devemos, direta ou indiretamente, obediência. Sim, para que serviria, se assim não fosse, a constituição ao longo dos anos de inúmeras organizações por esse mundo fora, para efeitos de prevenção, deteção e punição de atos desta índole? Tratados, recomendações, resoluções, grupos de trabalho, diretivas comunitárias, atos legislativos, planos de ação, enfim, uma parafernália ilustrativa da evidência do facto, ainda que infestada de uma essência vã.
Há séculos (julga-se que desde o séc. II AC), que existem geografias onde se opta pelo não pagamento ou pagamento reduzido, de impostos. Quem nunca ouviu falar, e.g. de feiras francas? Pela bruma da globalização, em especial no pós-2ª Guerra Mundial, assistiu-se a um incremento dessa tendência, traduzida no surgimento de atrativas localizações, para a instalação de empresas offshore, onde era possível branquear a proveniência suja de ativos financeiros, iludindo autoridades judiciárias, do cometimento de crimes de branqueamento, corrupção e fraude e evasão fiscal.
Foram países como a Grã-Bretanha, Suíça, Luxemburgo e Bahamas, que inventaram o conceito de offshore e de sigilo bancário. Seguiu-se os Estados Unidos, em especial os Estados de Delaware e New Jersey que, no final do século XIX, através da atribuição de vantagens fiscais a empresas sediadas noutros Estados, surfaram esta vantajosa onda.
Através destas iniciativas heroicas, ao fim, e ao cabo, de proteção de dinheiro inquinado, permitiu-se à firma de advogados Mossack Fonseca, liderar durante mais de quarenta anos, a partir do Panamá, um molusco cefalópode de inimagináveis tentáculos, apto a defraudar as administrações fiscais de mais de duzentos países, utilizando para o efeito, paraísos fiscais. Estes territórios cumprem uma combinação de determinados critérios: rigoroso sigilo bancário; parca ou inexistente tributação sobre rendimentos, lucros ou patrimónios, especialmente para os não residentes; criação e instalação de sociedades, fundos fiduciários e trusts legalmente facilitada e escassa cooperação judiciária internacional.
Politica e economicamente, estes tax heaven estão intimamente vinculados a Estados da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico), que em 2015 divulgou o relatório final do Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que teve como objetivo o desenvolvimento de uma estratégia global de combate à evasão fiscal, em quinze ações concretas a encetar pelo Governos e concluiu, que se perdem anualmente cerca de 4% a 10%, de receita fiscal global (o equivalente a 100-240 biliões de dólares americanos).
Em Novembro de 2015, o Financial Secrecy Index (índice de segredo financeiro), da Tax Justice Network (TJN), colocou na pole position a Suíça, Hong Kong e os Estados Unidos da América, surgindo o Panamá em 13º lugar (e já agora, a Zona Franca da Madeira, em 78º). Estima ainda, aquela organização, que 21 a 32 triliões de dólares de riqueza privada esteja escondida em jurisdições secretas, termo que a TJN prefere, à expressão “paraíso fiscal”. Refere ainda que os países africanos, são o maior credor do mundo, considerando a perda de cerca de um trilião de dólares que, mesmo descontados 200 biliões de dívida, (nas mãos das populações, ao contrário do dinheiro evadido, propriedade de elites afortunadas), apresenta saldo positivo para aqueles. Por fim, considera que países como Portugal, Grécia e Itália, foram “postos de joelhos” durante décadas, devido à evasão fiscal.
Paradigmática é a definição que, em 2003, no livro The Sink: How the Real World Works – Terror, Crime and Dirty Money, o autor Jeffrey Robinson estabeleceu para a zona franca do Panamá: “é o buraco negro, através do qual o país se tornou no mais imundo tanque de lavagem mundial de dinheiro.”
As reações dos alvos iniciais situam-se em diferentes posições do espectro. A Rússia entende que tudo isto se trata de “Putinofobia”. O Ministro da Justiça Espanhol afirmou que pretende averiguar as informações referentes a cidadãos espanhóis, à semelhança das declarações de Hollande. A Alemanha espera esforços contra práticas ilegais (a saber, esperemos que não- mais-do-mesmo). O Reino Unido prefere remeter o assunto, para o foro privado, afirmando preferir centrar-se no que o Governo está a fazer. A Procuraduría General de la Nación do Panamá anunciou que vai dar início, a investigações aos delitos indiciados nos “papéis”.
Aguardemos, com a devida e cautelosa serenidade, as cenas dos próximos capítulos.
Rute Serra