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Morrer pelo fogo ou pelo frio em Portugal? Ou pela conta da electricidade?

Portugal é um país maravilhoso. A sua população é, grosso modo, internacionalmente referenciada – vista aos olhos dos de fora – como “acolhedora”, “simpática”, “prestável”, “divertida”, humana… Um conjunto interessante de adjectivos que nos massajam o ego nacional. Com reflexos positivos no aumento da procura internacional deste nosso maravilhoso país. Óptimo.

Mas, como em muito das coisas bonitas e boas da vida, há um “senão”. Este, um problema de facto, para nós que vivemos e respiramos português de Portugal, está centrado, no seu essencial, na falta de exigência – e de responsabilidade – nacional, de todos, naqueles dias dedicados ao exercício de cidadania pelo voto, as eleições legislativas. O epíteto de “povo de brandos costumes”, bem mediatizado, tem permitido eleger, ao longo das últimas duas décadas, de forma consecutiva, um grupo de políticos que, em abono da verdade, no exercício do poder executivo, têm construído um modelo de infernização diária, lento mas agudo, de vivência num país com tanto potencial como o nosso.

Poderia escolher uma miríade de temas. A incompetência revelada pela classe política nacional é profícua em exemplos. Não obstante, pela censura que me é mandatória fazer à ilustre incompetência executiva, objectivando o título deste comentário, em termos de dívida tarifária energética e rendas leoninas garantidas a privados, hoje apetece-me falar do nosso modelo imposto de consumo de energia.

Tocou-me, significativamente, uma notícia que hoje faz manchete no Jornal de Notícias: «Morrer pelo fogo, para não morrer de frio». Leigo nesta matéria das energias, das rendas garantidas às eléctricas e assustador valor de 5 mil milhões de euros de divida tarifária às costas dos portugueses

fui tentar googlar algumas informações sobre a matéria. Porque razão a escolha dos portugueses está, neste momento, circunscrita a um miserável “morrer de frio”, “morrer pelo fogo” ou “morrer pelo valor da conta mensal de eletricidade”. Intriga-me. Sobremaneira.

Os governos, qualquer um deles, logo dirá que a pergunta surge enviesada e descontextualizada da realidade. Nesta nova era de “factos alternativos”, qualquer um deles prontamente sacudirá a resposta para um lacónico: “durante o nosso exercício executivo, as tarifas sociais foram sempre revistas em alta”. A verdade, essa, ficará acometida à disposição que cada uma das sensibilidades políticas queira defender.

Vou começar por factos que fui encontrando. O diferimento de custos do sistema eléctrico para futuro iniciou a sua cavalgada, infernal, em 2006. A grave crise internacional que brotou em finais de 2007, fez-nos chegar uma onda de choque que, só entre 2008 e 2009, fez disparar o volume da dívida tarifária em cerca de 2 mil milhões de euros. O contexto da escalada do preço do petróleo e a repercussão que teve junto da escalada de preços de outras matérias primas como o gás natural, por exemplo, a isso conduziria. O incentivo (rico) à produção de energia eléctrica através de fontes renováveis – com rendas na csa dos dois dígitos – que os grandes produtores açambarcaram por completo, fecharia o modelo de negócio, (des)regulado por uma tal de ERSE,(cuja imagem de destaque sintetiza parte da minha incredulidade) do fornecimento de energia eléctrica que nos é obrigatoriamente imposto.

Este modelo de negócio, pressuposto na transferência de todos os custos (e mais alguns) e, bem assim, da manutenção das rendas garantidas a determinados grupos económicos privados, para o consumidor final, resulta na – finalmente uma – liderança de um ranking europeu. Não, não é futebol. É, tão-só, o ranking do preço da energia na União Europeia, o qual é confortavelmente liderado por Portugal.

E há na liderança deste ranking alguma problema de monta?

Comecemos pelas empresas: os custos associados a um necessário e efectivo consumo de uma das energias mais cara da Europa, é, em termos comparativos com outras empresas europeias, um claro sintoma de perda de competitividade. Queixa constante desde 2009 por parte dos nossos empresários – que vão acompanhando o escalar deste custo de contexto – é ainda um facto difícil de assimilar (para um país que deveria ter preocupações de crescimento económico) a medida de aumento do IVA associado à prestação deste bem essencial para 23% tomada pelo anterior governo em Setembro de 2011

Sendo um custo que não consegue ser apagado dos balanços das empresas, e ferindo de morte a competitividade num mercado cada vez mais globalmente exigente, a contenção de custos nas empresas tem passado sempre por aplicar cortes (em nome da competitividade) noutros dados estatísticos. O emprego, por exemplo, é um desses dados estatísticos.

Mas, se as empresas produtivas se queixam – com razão – o que dizer das famílias? A electricidade, a energia em casa, é um bem essencial. Pelo menos, se assim não o é entendido para os sucessivos governos, deveria sê-lo. E sendo um bem essencial, de primeira necessidade, como se explica às famílias que estas são obrigadas a consumir a energia mais cara da Europa? Principalmente quando as cotadas energéticas continuam a distribuir dividendos, ano após ano, aos seus accionistas?

Quem paga o quê? A quem? Retira-se do consumidor para encher o bolso a um dado accionista? Isto é ser-se apologista da liberalização do mercado? Mas o mercado, regulado – essa divindade que cumpre defender – está pressuposto na transferência de liquidez do consumidor final para as empresas (e seus accionistas!) produtoras e distribuidoras de energia?

Nesta liberdade de mercado, então como é que nenhuma destas empresas – estratégicas – é detida pelo Estado? O Estado é masoquista e prefere garantir dividendos extraordinários a grupos privados? A título de exemplo, só no ano de 2016:

1) a Galp dá-se ao luxo de distribuir dividendos intercalares em 2016;

2) a EDP aumentou em 3% o dividendo de 2016, comparativamente ao de 2015;

3) a REN continua com a política de distribuição de dividendos estabilizada, desde 2013, nos 0,171€.

E o que é que o Estado fez?

Desde 2005 foi privatizando, uma atrás da outra, estas empresas a grupos privados. Abrindo mão dos dividendos que estas têm garantido, uma atrás da outra, foram-se vendendo empresas estratégicas por tuta e meia à iniciativa privada. Na pressão do imediato, as contas, a médio prazo, provam o erro de conceder estas deliciosas regalias a tal iniciativa privada. Pelo menos as contas que o Tribunal de Contas se deu ao trabalho de fazer, tendo por base os dividendos destas empresas. Genial, não? Creio que há uma expressão popular sintetizadora desta acção política: “esmifrados até ao tutano, vão-se os aneis e os dedos”.

Infelizmente, se o cenário não é, nesta matéria, de todo, abonatório para a classe política que temos vindo a eleger, num país como Portugal, com a guilhotina da imensa dívida pública cada vez mais presente sobre as nossas cabeças, a realidade de famílias a viverem à custa de(ou ao largo) um vencimento líquido inferior aos 557 euros (essa imensa fartura) tem crescido assustadoramente nos últimos anos. E se esta realidade, miserável, de salários baixos é cada vez mais a cruz lusitana das nossas famílias, o preço da energia mais cara da Europa, é suportado conforme se pode. E este conforme se pode, miserável, que nos impõem, por vezes é-nos relembrado através de notícias, como a de hoje. Miserável acção governativa que transfere liquidez dos seus cidadãos para alimentar os bolsos de certos grupos privados.

Para que a morte destes 8 portugueses, no ano de 2017 (não no século passado), não caia no esquecimento da volatilidade da notícia diária, que a imagem infra dificilmente se apague da nossa memória. Exige-se a mudança política efectiva em torno da energia e das rendas garantidas. É um mínimo.

PS: a imagem é parte da capa da edição de 31 de Janeiro de 2017 do Jornal de Notícias.

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