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Ainda o Acórdão 1079/16

Na sequência do meu artigo no DN esta semana sobre o Acórdão 1079/16 do STA, de 14 de dezembro de 2014, alguma reflexão adicional:

(1) Não se trata, apenas, de um episódio injusto ou caricato com muitos leitores pensam. O recurso extraordinário foi aceite pelo STA porque, precisamente, entendeu o douto tribunal que havia necessidade de definir jurisprudência sobre estes habituais conflitos entre cidadãos e Estado quando há documentos em falta. Trata-se, pois, de um importantíssimo acórdão que tem efeitos práticos na vida de todos.

(2) As três premissas do raciocínio jurídico do STA já foram explicadas no meu artigo do DN: não há princípio de veracidade, o ónus da prova é sempre do cidadão, o cidadão tem a obrigação de distinguir um documento autêntico para efeitos probatórios de qualquer outro documento emitido pelo Estado.

(3) Surpreendentemente, o STA faz uso de um argumento económico. O princípio de veracidade não pode existir porque “cair-se-ia no absurdo de, doravante, onerar a Administração com a prova de todos os erros e deficiências causais das exclusões que decretasse em tais procedimentos.” Ora, implicitamente, o STA diz que semelhante custo não existe quando oneramos 10 milhões de cidadãos. Um bom exemplo de economicismo (apenas o custo para o Estado releva) por oposição a uma saudável análise económica (existe um custo de transação derivado de informação assimétrica e a questão é saber qual das partes, Estado ou 10 milhões de cidadãos, deve ser onerada). Ilustra também como a solução eficiente (deve ser o Estado a ser onerado com grande parte deste custo porque isso incentiva o nível de precaução adequado) não é a solução economicista advogada pelo STA.

(4) Ao Estado não incomoda, mas a mim sim, que o concurso de acesso à universidade, pela importância que tem na vida de tanta gente, não tenha qualquer fase para que o candidato possa corrigir ou sanar a documentação alegadamente em falta. É o que acontece em quase todos os concursos públicos ou nas relações cidadão-Estado (sim, até com a poderosa Autoridade Tributária). É o que acontece no concurso de acesso ao ensino superior nos países que conheço de perto (Espanha, EUA, Reino Unido). Mas a DGES decidiu que não quer essa fase (provavelmente numa decisão ilegal e inconstitucional). Portanto, quando não encontra o documento, notifica a exclusão e ponto.

(5) Ao Estado não incomoda, mas a mim sim, o papel absolutamente lamentável do Subdiretor-Geral do Ensino Superior, identificado apenas por “Professor Doutor …” (porque os quadros superiores do Estado devem ser protegidos de prestar contas dos seus atos). Evidentemente que basta um Google e uns minutos de investigação, e sabemos quem é quem. Pouco interessa, pois não é uma questão pessoal. Sendo do seu conhecimento que o dito documento existia nos arquivos da DGES, sabendo que a candidata preenchia os requisitos necessários para entrar em Medicina (um feito verdadeiramente heróico no sistema português), optou pelo calvário burocrático porque a sua função é defender… a burocracia.

(6) E o mais idiota de tudo. Tendo o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa corrigido a loucura burocrática da DGES e da lamentável decisão do seu Subdiretor-Geral, o Estado decidiu recorrer. Porquê? Porque queria uma vitima? Por vingança? Por mesquinhez? Porque gosta de lapidar os seus recursos em contenciosos idiotas? É tudo mau… e, no entanto, explica tão bem tudo o que está errado no Estado, na Justiça, e no atraso português.

(7) Evidentemente nada disso preocupa os partidos políticos!

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